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Amália e os Poetas

Uma cumplicidade para a vida


Quando Amália começou a cantar, os temas tratados no Fado eram essencialmente o quotidiano, o amor, as agruras da vida, as dificuldades do trabalho. Sem dúvida, Amália elevou o patamar do Fado para além do que era exigível e do que era, até, expectável. Corria o ano de 1965 quando Amália editou um disco de 45 rotações que se intitulava Amália Canta Camões. Saíam então gravações de "Erros Meus", "Lianor", "Dura Memória". Pela mesma altura, saiu uma edição do Jornal Popular, de 23 de outubro de 1965, onde diversas personalidades do meio literário e artístico davam o seu parecer sobre esta inovação, a princípio, atípica no Fado. Entre estas celebridades, encontram-se nomes como Hernâni Cidade, David Mourão Ferreira, Alain Oulman (compositor que referiremos adiante), Alexandre O´Neill, José Gomes Ferreira, Urbano Rodrigues, Maria Teresa de Noronha e Júlio de Sousa. Algumas das vozes manifestaram-se a favor, outras duramente contra. Afinal, Camões era o príncipe dos poetas, e cantar Camões no Fado seria, de algum modo, desmerecê-lo.

Amália elevou o patamar do Fado para além do que era exigível e do que era, até, expectável.

Para vermos mais reflexos desta polémica, no ano de 1966, Amália marca presença numa entrevista em que a própria era a ré e os acusadores pertenciam à opinião pública, julgando-a também pelo crime de ter cantado Camões e de ter deixado o Fado dito «autêntico» para trás. De uma forma estupefacta, Amália diz que não percebe a diferença entre o fado autêntico de antes e o fado que ela canta. Assume ainda que um defeito que considera a si própria é o da autenticidade.

Já antes destas datas, Amália havia voado mais alto. Em 1962 lança o primeiro disco com composições de Alain Oulman, intitulado Busto, embora saibamos que Amália começa a trabalhar com o compositor citado ainda em 1959. Este disco é uma verdadeira surpresa. Em primeiro lugar porque no número de abertura, Asas Fechadas, a voz de Amália permanece apenas acompanhada pelo piano, sem as habituais e tradicionais guitarra e viola. Depois, porque as linhas melódicas e harmónicas se alteram e o responsável por esta inovação é de facto Oulman. Neste sentido, Amália interpreta já composições de célebres poetas, entre os quais Luís Macedo (autor de "Asas Fechadas" e "Cais de Outrora", "Vagamundo"), David Mourão-Ferreira (autor de "Maria Lisboa", "Madrugada de Alfama", "Abandono", "Aves Agoirentas"), Pedro Homem de Mello (autor de "Povo que Lavas no Rio", "Fria Claridade", "Rapaz da Camisola Verde") e, inclusive, ela própria, com o poema "Estranha Forma de Vida".

Amália com Alain Oulman

Estava inaugurada, oficialmente, uma nova era no Fado, e, sem dúvida, uma nova era também na carreira de Amália.

Neste disco, já se denota a iniciativa que irá perdurar pelas décadas seguintes, que consistia em Amália interpretar poetas que pertenciam ao seu círculo, e que frequentavam a sua casa.

Era notável a genialidade de Amália para a palavra, que aparece revelada não só no poema que escrevera e que gravara "Estranha Forma de Vida", mas também pela forma como entoava cada vocábulo. Destacamos o fado "Povo Que Lavas No Rio", como poderíamos destacar outros, no qual a forma como Amália canta «Povo», sustendo a nota na medida certa, revela ao ouvinte que o povo português, esse povo pobre que lava no rio, pode estar todo concentrado naquela voz. O povo, ou o significado de o ser. Pedro Homem de Mello, do qual Amália interpreta em primeiro lugar o poema "Fria Claridade", revelara em canal nacional que a sua poesia, pela voz de Amália, se tinha elevado ao povo. Nesta simples frase, Pedro Homem de Mello revelava que agora o povo podia ouvir Camões, poetas de Cancioneiro Geral, D. Dinis, e podia conhecer e usufruir de toda esta poesia através da voz de Amália. 

Mas a artista não se deixou ficar pelos poetas e foi ainda mais longe. Interpretou de modo fascinante as canções populares. Neste sentido, contam-se histórias do descontentamento dos poetas e dos músicos que a acompanhavam, quando Amália decidiu interpretar o "Cochicho da Menina" ou até a "Casa da Mariquinhas". Não podemos esquecer o modo como Amália também elevou o folclore português ao seu expoente máximo, levando-o às grandes salas de espetáculo do mundo, Hollywood Bowl e Lincoln Center, em 1966, acompanhada pela Orquestra Filarmónica de Los Angeles e dirigida pelo maestro Andre Kostelanetz. 

Alberto Janes

Também é de recordar outro nome célebre neste contexto, Alberto Janes. Este aparecera em Casa de Amália com um fado na algibeira, "Foi Deus". Sentou-se ao piano, tocou e cantou. Ao que parece cantava mal, e tocava pior ainda. O que salvara o fado, hoje dos mais belos de Amália, fora a imaginação da própria, que se previu a cantá-lo com a sua voz encantadora. Alberto Janes foi ainda o autor da "Caldeirada", uma reflexão sobre a poluição, e ainda "É ou Não É", e  também "Oiça Lá Ó Senhor Vinho".

As tertúlias em casa de Amália aparecem também representadas num disco de 1970, com o nome de Amália Vinicius. Este LP permite-nos imaginar, ver, contemplar de que forma Amália Rodrigues interagia com o seu círculo de poetas e de amigos durante as famosas tertúlias na Rua de São Bento. Esta fascinante relíquia gravada nos finais dos anos 60 e editada em 1970 revela-nos serões repletos de poesia, de fado e de conversa. Natália Correia lê a "Defesa do Poeta", José Carlos Ary dos Santos lê "Retrato de Amália", Vinicius de Moraes canta "Saudades do Brasil em Portugal", de sua autoria. Neste disco marcam também presença David Mourão-Ferreira, o guitarrista Fontes Rocha e o violista Pedro Leal, além de Amália, Natália Correia, Ary dos Santos e Vinicius de Moraes. Este último nome quase que nos pede declaradamente para entrarmos na poesia brasileira, e, neste âmbito, Amália interpretara também poemas de Cecília Meireles, sendo um exemplo supremo o famoso fado "As Mãos que Trago".

Amália, que só tinha o ensino primário, revela-se poeta de palavras simples, mas de sentidos e de sentimentos complexos.

Mas de quem Amália interpretara mais poemas fora dela própria. Na década de 80, Amália gravara dois discos apenas com poemas da sua autoria, cujas composições têm assinatura de Fontes Rocha e de Carlos Gonçalves. O disco Gostava de Ser Quem Era é gravado em 1980 e Lágrima é gravado em 1983. Neste sentido, Amália, que só tinha o ensino primário, revela-se poeta de palavras simples, mas de sentidos e de sentimentos complexos. Embora não possa ser enquadrada nos cânones de poesia do seu século, Amália constitui neste campo um caso à parte, com bastantes características próprias. No fundo há uma oposição entre passado e presente imanente daquilo que fora a sua vida e carreira. O título Gostava de Ser Quem Era propõe-nos também isso. Deste sentimento, o exemplo que extraímos e que é paradigmático é o fado "Lavava no Rio Lavava". Neste, existe uma oposição clara entre as dores do passado, físicas, e as amarguras do presente, que se concretizam na própria saudade do sofrimento. A partir destes sentimentos, surgem-nos dois versos paradigmáticos: “já não temos fome mãe/mas também já não temos vontade de a não ter”.

Por outro lado, se há lugar para a dor, e se esta ocupa algum espaço na obra poética de Amália, então a alegria e o espírito brincalhão também estão presentes. O registo deste último aspeto fica vincado, sobretudo, na sua obra de poesia, Versos, editada em 1997, com poemas como "A Onda" e ainda trava línguas como "335 Gafanhotos".

Com isto, Amália percorre toda a poesia portuguesa, a vários níveis, permitindo-se que eleve os ilustres poetas ao povo, mas também que promova diante das supostas elites literárias o folclore português e as canções populares. Ela própria acaba por ser também a poeta de toda uma vida.

Mencionemos ainda algumas notas no que diz respeito ao maestro Frederico Valério e à também inovação que este representou para o Fado, com o seu estilo próprio de compor, a que alguns chamam  «Fado Canção moderna». Este maestro compõe para Amália alguns dos mais belos fados dos anos 40.  É de louvar sobretudo o comprometimento deste compositor para com o cinema, meio em que Amália o terá conhecido. Este compõe as bandas sonoras dos filmes Capas Negras e Sangue Toureiro.

Também de traços inovadores, e cuja referência se torna indispensável, é o letrista e compositor Carlos Paião. A sua presença na carreira de Amália não terá sido tão efetiva quanto os demais mencionados, no entanto escrevera e compusera para Amália uma canção inusitada, com o título "O Senhor Extraterrestre". Esta canção é sobre um extraterrestre que visita o quintal de uma senhora com medo de que a vizinha a veja com um senhor estranho. No início não se entendem, porque o sinal do senhor extraterrestre estava mal sintonizado. Entretanto, a senhora acaba por oferecer café ao extraterrestre, perguntando a este ser estranho se lhe encontra alguém que lhe arranje o bacalhau. Esta letra prima sobretudo pelo humor e versatilidade, que une a estranheza de um episódio caricato ao que pode haver de mais português: o café, o vinho, o bacalhau, a camisa em flanela, o bem receber, e, sobretudo, no momento da partida, um agradecimento profundo. O senhor extraterrestre puxa do botãozinho só para dizer «Deus lhe pague».

Carlos Paião

E, embora nós não tenhamos esse botãozinho, ficamos também a agradecer a Amália o itinerário que fez pela poesia portuguesa, pelas Cantigas de Amigo, pelo Cancioneiro Geral, por ter cantado Camões, e por ter interpretado poetas seus contemporâneos. 

A sua voz ajuda, pois, a imortalizá-los. 

POR PALAVRAS DA PRÓPRIA AMÁLIA:

Um dia eu estava num acampamento e levaram-me o Alain Oulman, que tinha feito uma música a pensar em mim, o "Vagamundo". Fui ouvir e gostei. Seguiram-se outras e fui contra a maré das pessoas que estavam ao pé de mim, que achavam aquilo muito complicado. Os guitarristas, de facto, tiveram de aprender aquelas harmonias novas que o Alain trazia, que não tinham nada a ver com o fado, porque o fado é pobre em harmonia.

In Amália Uma Biografia, de Vítor Pavão dos Santos, p.149-150

Para além da música, o Alain, com a sua vasta cultura fez-me travar conhecimento com grandes poetas. Ele não só fazia as músicas, como ia procurar, aos livros de poesia, letras para as músicas. Dedicou-me um tempo grande. Não me influenciou mas, durante um tempo, andei toda contente com a descoberta que ele me trazia. Trabalhámos muito os dois.

O primeiro disco com músicas do Alain (1962) foi importante para uma elite, mas não tem nada a ver com o fenómeno que acontece comigo. Trouxe outro público para o pé de mim. Mas houve muitíssima gente que não gostou, que gostava mais do que eu cantava antes. Havia quem dissesse que eu já não cantava o fado, que o fado do Alain não era fado. Mas isso foi uma constante: os primeiros fados que cantei não eram fados; depois os fados do Valério não eram fados; depois já eram e os do Alain é que não eram.

In Amália Uma Biografia, de Vítor Pavão dos Santos, p. 150

Por esta altura, muitos poetas escreveram coisas bonitas para eu cantar. O Luís de Macedo, que se chama Chaves de Oliveira e era adido cultural na Embaixada de Portugal em Paris, foi-me lá apresentado para mim, até que casou e me disse que deixava de escrever

In Amália Uma Biografia (1ª Ed.), de Vítor Pavão dos Santos, p. 153

Sempre escrevinhei muita coisa que deitava fora. Fazia um tipo de gazetilhas para mandar à minha irmã Odete ou à minha sobrinha Idalina. Andava tudo espalhado. Há pouco tempo é que a Estrela começou a remexer as gavetas, a encontrar coisas engraçadas que resolvi acabar e com o acabar nasceram outras, por causa das músicas que o Carlos Gonçalves e o Fontes Rocha faziam. Nessa altura eu estava doente, de cama, e ia fazendo os versos. E depois vieram os discos.

A minha tendência é sempre para escrever coisas tristes: (…)

Mas também faço, às vezes, coisas divertidas (…)

In Amália Uma Biografia, de Vítor Pavão dos Santos, p.156-157

José Carlos Ary dos Santos

O Ary dos Santos passava muitos serões aqui em casa. Muitos versos foram feitos aqui, feitos para mim. Eu até sugeria uma palavra em vez da outra e ele, que nisso não era nada vaidoso, estava sempre de acordo comigo. Fez coisas muito bonitas para mim. De tudo o que ele me fez, talvez o que eu gosto mais é "Alfama" (…).

In Amália Uma Biografia, de Vítor Pavão dos Santos, p.153

Alexandre O'Neill

O Alexandre O´Neill, que era um grande poeta, disse um dia que o fado era muito frisado e o Alain é que o desfrisou. A "Gaivota", que ele me fez, é uma das coisas que canto sempre.

In Amália Uma Biografia, de Vítor Pavão dos Santos, p. 154

Luís Vaz de Camões

Cantei poetas e cantei Camões. O Camões, para mim, é um grande fadista. Há lá mais português e mais fado do que o Camões: "Com que Voz Chorarei meu triste fado?" Não há ninguém que faça melhor do que isto, para o fado, hoje em dia. Houve uma grande polémica por eu cantar Camões. Achei uma burrice. Por pior artista que seja, ninguém consegue destruir um grande poeta, se o cantar.

In Amália Uma Biografia, de Vitor Pavão dos Santos, p. 154

Pedro Homem de Mello

Num livro de Pedro Homem de Mello vi a "Fria Claridade". Gostei dos versos, cantei e foi um sucesso. (…)

"Olhos Fechados" e "Cuidei Que Tinha Morrido" foram feitos para mim. São ambos lindo, mas nenhum deles teve grande sucesso. As pessoas não compreenderam. O "Povo Que Lavas No Rio" foi tirado de um livro. Como o poema é muito grande, escolhi só as partes mais dramáticas e fiz um arranjo, mas tem outras sextilhas muito bonitas. Arranjei aquela música para aqueles versos e acho que resultou. Aquela melodia, o "Fado Vitória", do fadista Joaquim Campos, é muito bonita. É o cante grande, canto dramático. É uma melodia da escala espanhola, uma música que me dá liberdade, que me deixa mudar, que posso andar lá dentro. Canto sempre o "Povo que Lavas no Rio" e nunca me canso, porque estou sempre a tentar navegar em outras águas.

In Amália Uma Biografia, de Vítor Pavão dos Santos, p. 96

A existência do Valério, quando eu estava a começar a cantar, foi formidável. Tinha um tipo de melodia que era para a minha voz. Conhecia muito bem a minha voz e escrevia para mim, para toda a gama da minha voz e escrevia para mim, para toda a gama da minha voz, para cima e para baixo.

In Amália Uma Biografia, de Vítor Pavão dos Santos, p. 69
Nota: todas as transcrições seguem a 1ª Edição da Biografia de Amália, da editora Contexto